Fonte: Alecsandra Cunha
A Semana Farroupilha sempre atiça os ânimos no Rio Grande do Sul. Os centros de tradição organizam festividades, “acampamentos” e bailes. O desfile de 20 de setembro foi institucionalizado como uma parada cívica. Inúmeras pessoas vestem trajes ditos “típicos” e participam das comemorações, condensando formas de sentimento regionalista que existem, de modo difuso, o ano inteiro. Porém, vem crescendo, nos últimos anos, uma contra-corrente que põe em questão as bases históricas dessa comemoração e, por aí, discute sua legitimidade. Parece que, cada vez mais, essa é também uma época de polêmica.
Uma parte das críticas dirige-se à representação do passado construída e ritualizada pela corrente hegemônica dentro do tradicionalismo. Outra parte questiona o culto a valores patriarcais que estavam unidos a uma hierarquia social extremamente desigual. Porém, não quero escrever especificamente sobre o tradicionalismo. Na verdade, há que se pensar para além dele. É perceptível, em diversos setores da sociedade, um sentimento regionalista difuso, incentivado por parte da mídia e utilizado pelos políticos. Esse sentimento de identidade não pode ser explicado apenas como produto do MTG, que não é seu único difusor e não conseguiria fazê-lo sozinho. Uma pergunta pertinente é indagar o porquê do sucesso social dessa identificação.
Não há dúvida que há vários modos de sentir-se gaúcho. Mas é fato que a maioria deles passa pela identificação com o gaúcho como figura mítica, primeva, fundamental. Ele teria sido o “tipo social” por excelência da região da Campanha, mas também existente em outras áreas. Os gaúchos teriam sido homens destros nas lides campeiras, que viveriam entre o trabalho como peões nas estâncias e a luta nas inúmeras guerras de antigamente (outra categoria vaga). Sua principal epopeia teria sido a Revolução Farroupilha, onde, guiados por líderes-estancieiros, que também encarnavam a “cultura gaúcha”, o povo do Rio Grande do Sul teria lutado contra a opressão do Império em busca de liberdade.
Fonte: Alecsandra Cunha - Set/2010
As pesquisas históricas atuais mostram inúmeras divergências com essa representação. Em primeiro lugar, os agentes sociais com aquelas características atribuídas ao “gaúcho” eram apenas uma parte da população das regiões do Rio Grande do Sul, nos séculos XVIII e XIX. Provavelmente, nem eram a maioria. Uma pequena elite de grandes estancieiros acumulava a maior parte da riqueza no campo, mas, abaixo deles, existia uma miríade de pequenos e médios produtores de gado e lavoura que formavam uma forte base social. Isso ocorria mesmo nas regiões onde os grandes latifundiários eram muito expressivos, como na campanha. A produção familiar era, portanto, comum mesmo antes da proliferação de núcleos coloniais de imigrantes alemães e italianos.
Além disso, a escravidão estava difundida por todo o interior do Rio Grande do Sul. Nas grandes estâncias, a mão-de-obra dos escravos campeiros, montados a cavalo, era imprescindível. Eles trabalhavam lado a lado com os peões livres. Além deles, diversos outros escravos trabalhavam nas roças, nos serviços domésticos ou como pedreiros, carpinteiros, sapateiros. A importância que tinham nessa economia explica porque a maioria dos líderes farroupilhas era contra a abolição da escravidão.
Por outro lado, ao contrário do que se repete em todos os chavões comemorativos, a Revolução Farroupilha não foi a luta dos rio-grandenses contra o Brasil. Uma parte importante dos moradores da província lutou a favor do Império. É impressionante como esse fato tende a ser minorado ou esquecido. Nem mesmo na região da Campanha, tida como base dos farroupilhas, havia tal unanimidade. Muitos dos líderes militares e grandes estancieiros, que ali viviam, eram legalistas.
Contudo, a vitória, nas construções posteriores, foi da imagem do gaúcho errante e lutador, combatente da Farroupilha, como se isso pudesse dar conta do que realmente importa na nossa história e, assim, justificar valores do presente. Essa escolha, é claro, explica muito mais sobre os homens do século XX e XXI, do que sobre um suposto “gaúcho histórico”. Um dos grandes atrativos dessa figura, é que ela se presta para estabelecer uma diferença com relação ao restante do Brasil. Muitas das características que gostamos de atribuir ao gaúcho são as que nos põem em contraste com uma imagem que construímos do que seria o brasileiro. Já se disse que ser gaúcho é a forma dos rio-grandenses sentirem-se brasileiros, que essas coisas estão unidas. Acredito que sim, mas na relação entre elas há também um componente de oposição.
Assim, os gaúchos de hoje, tal qual a figura mítica, seriam leais, viris, destemidos, guerreiros, não se dobrariam a tirania. Em contraposição, cria-se outro estereótipo dos brasileiros como desonestos, acomodados, submissos. Naturalmente, para funcionar, essa simplificação sobre “os brasileiros” impõe esquecer a imensa diversidade que ela encobre. E também fechar os olhos ao fato de que, entre 1817 e 1848, no mesmo contexto histórico da Revolução Farroupilha, outras revoltas análogas ocorreram no Pará, Maranhão, Bahia, Pernambuco, Minas e São Paulo. A essa oposição agregou-se, ainda, a idéia de que a presença dos colonos imigrantes teriam tornado o gaúcho mais europeu e trabalhador, ou seja, mais distante ainda do que se pensa dos brasileiros.
Um lado bastante interessante do regionalismo é a busca de levar adiante aspectos de uma cultura local e não permitir que ela seja completamente submergida na padronização proposta pela globalização econômica e cultural. Não sentir vergonha de nossas especificidades culturais e permitir que elas floresçam é algo importante para a manutenção da riqueza cultural que reside na diversidade. Porém, um problema sério aparece quando, associado ao regionalismo, vem se colando um bairrismo que é cada vez menos inocente.
Não se trata de querer acabar com as mitologias. Todos nós as temos, elas nos ajudam a dar sentido ao mundo. Muito menos é o caso de pretender colocar o conhecimento histórico no lugar delas. Afinal, este também não está isento de mistificações e armadilhas. Trata-se, apenas, de oferecer à sociedade outras representações do passado e novas linhas de raciocínio que possam exercitar a reflexão e fundamentar posicionamentos menos definitivos.
Por: Luís Augusto Farinatti, historiador e professor do Departamento de História da UFSM